Foucault: amizade e experimentação
Apesar de Foucault não ter feito nenhum tipo de análise arqueológico-genealógica, achava importante tal análise e já tinha algumas direções para a discussão da amizade. Uma delas é a de que diante das análises feitas da antiga estilística, da Antiguidade - a philia-amicitia, composta de tarefas, obrigações, coações e hierarquias – se interessava pela reabilitação e revalorização dessa práxis ascética. Estaria se falando numa amizade de espaço aberto para experimentar, ter multiplicidades de formas de vidas possíveis.
Foucault concentra-se principalmente na cultura homossexual ao se reportar a esse tipo de amizade. A homossexualidade traz a oportunidade de reabrir as virtualidades das relações e afetividades por causa da posição transversal a que se encontra e daí permitir posições diagonais no tecido social. As decisões sexuais possuem uma dimensão existencial capaz de transformar e criar formas de existência. Foucault acredita que ser homossexual e ser devir, e por sua vez, se concentra nessa cultura que seria, na visão dele, capaz de criar novas formas de existência. O hossexualismo, devido seu caráter minoritário, consegue efetuar um “devir criativo”para a construção de novas formas de relações, ou a criação de um novo “direito relacional”.
A partir desta reflexão sobre o fenômeno da amizade, Foucault nos remete a uma viragem não só ética, mas também estética, apontando para uma atualização da estilística da existência. A ética da amizade visa intensificar a experimentação, concentrando na percepção e aumento tanto do prazer próprio quanto do outro (do amigo). Tal ética seria um “programa vazio”, capaz de oferecer ferramentas para a criação de relações variáveis e multiformes, concebidas de forma individual, tendo cada um sua própria ética, não existindo necessariamente uma como correto.
Essa amizade seria uma relação agonística, sem forma, consenso ou violência. Agonística porque são relações livres que apontam para o desafio e incitação recíproca, e não para a submissão do outro. Trata-se de um jogo estratégico dentro das relações de poder com o mínimo de dominação, afim de um relacionamento intenso e móvel. Dentro dessa concepção de amizade foucaultiana, admite-se componentes como desigualdade, hierarquia, ruptura, de caráter eletivo, aristocrático, anti-social e de natureza desigual. A amizade nesse sentido estaria se opondo aos princípios democráticos que conduzem a uma codificação da amizade e se tornaria uma alternativa às formas de relacionamento prescritos e institucionalizados como a família ou matrimônio. E por conta disso é considerada uma ameaça à ordem social e por isso a amizade é canalizada a formas conhecidas com mecanismos de regulação para desativação do potencial transgressor. Quando regulada, a amizade fica voltada para o privado, em que instituições sociais são o que determinam seus limites e contribuem para limitar o número possível de relacionamentos, pois caso contrário, seria mais difícil administrar e controlar. Não é a toa que a dimensão ético-transgressiva da amizade decorre da recusa de formas impostas de relacionamento e subjetividade.
O projeto foucaultiano de uma ética de amizade pela atualização da estética da existência, permite ir além da auto-elaboração individual para uma dimensão coletiva, superando a tensão indivíduo-sociedade com a criação de um espaço intersticial (uma subjetividade coletiva), capaz de considerar as necessidades tanto individuais quanto coletivas. Tal projeto busca lugares para produção de subjetividade que vão longe do individualismo, de maneira a mostrar que as relações não se esgotam na família ou matrimônio. Porém, com a morte de Foucault, interrompeu-se as análises e sua ética acabou apontando unicamente a um caráter sexual na procura da intensificação do prazer, o que limita a proposta, apesar de Jurandir Freire Costa considerar esse prazer na visão de Foucault estar conotando práticas de liberdade. Ortega afirma que não se deve apegar a essa exclusividade sexual para se elaborar uma nova ética e política da amizade, procurando outras bases, tal como Arendt que acredita que se deva recuperar a confiança no espaço público e encorajar a vontade de agir.
Percebe-se, então, que existem três conceitos percorrendo a noção foucaultiana de amizade: “forma de vida”, “programa vazio” e “direito relacional”. A primeira estaria se tratando de um modo de vida compartilhado por indivíduos que se diferenciam pela idade, status, atividade social, entre outros. Esta forma de vida representa uma possibilidade de política nova, não fundada no privado que a muito foi incutida na biopolítica moderna seja na ideologia médico-científica, seja no aparelho conceitual pseudocientífico que visam o controle do corpo, doença, saúde, medicalização, além de outros conceitos. Já os conceitos de “programa vazio” e novo “direito relacional” mostram que as formas de relacionamento não se esgotam na família e no matrimônio, assim como não existe um pertencimento a determinados grupos sociais. Assim, a amizade seria um “programa vazio” ou forma de vida que tem inúmeras formas para assumir, aberta a muito mais imaginar, possibilitando que cada indivíduo possa inventar sua própria ética.
O Doce sabor da amizade
O sociólogo americano Richard Sennet afirma que a sociedade está impregnada pela tirania da intimidade através de uma vida pessoal desequilibrada, esvaziada da esfera pública. Há o entendimento por parte dele e demais autores de que, junto a esse pensamento, a proximidade teria uma conotação moral. A intimidade com isso estaria também contribuindo para a psicologização das categorias políticas, pois a autenticidade nas relações sociais seria medida pela proximidade com os outros, como forma de reproduzir as necessidades íntimas e psicológicas dos indivíduos.
Para reverter esse quadro, torna-se necessário uma distância dos indivíduos para que haja uma sociabilidade, tendo em vista que este é inversamente proporcional intimidade. Estaria se propondo em apostar na impessoalidade, na exterioridade, no fora, na diferença, na aceitação do outro. A interioridade, por sua vez, estaria ligada às idéias de precisão, duração e segurança, que conduz a uma autodestruição narcísica.
Dentro dessa ideologia da intimidade, traz à tona a “teoria da ação comunicativa”, que afirma estar todos os problemas ligados à falta de comunicação. A comunicação estaria dentro do conceito básico da moderna teoria da sociedade. Montaigne mesmo observou que ao invés de existir uma preocupação em conhecermos os outros, ocorre um maior esforço em se tornar conhecido, tal qual uma mercadoria.
Dessa maneira, a sociedade incita a fala, principalmente sobre o que há de mais intimo, como o sexo. Chega-se a situação de pagar a determinados indivíduos para se falar de si mesmo. Diante desse panorama é que se percebe a carência pelo cultivo do silêncio, como forma de sociabilidade. No entanto, são as forças repressivas contidas e construídas pela sociedade que força à expressão. Muitas vezes não se dá o direito de nada dizer. Próprio Foucault refletiu a importância do silêncio, que muito foi cultivado tanto no Oriente quanto na Antiguidade, como um modo particular de se relacionar com os outros. O silêncio, então, se torna uma ameaça, pois questiona os princípios da sociedade de comunicação, pois será como se fosse a voz do excluídos da comunicação, do diferente, do outro. Estaria também colaborando o silêncio na formação de uma nova ética da amizade, pois muitas vezes não se precisa dizer nada, tendo a palavra mais corrompendo a amizade, enquanto o silêncio a preserva.
A sociedade incita um desnudar-se emocionalmente por meio até mesmo de uma variedade de terapias Trata-se da psicologização da realidade social, que traz com isso a perda da civilidade, da capacidade criativa, daí a necessidade da distância. A distãncia era fomentada em certas sociedades como do Antigo Regime, que prezam também pela impessoalidade, aparência, urbanidade, polidez, máscara, teatralidade, jogo, ação, imaginação, duplicidade; ao invés da autenticidade, intimidade, sinceridade, transparência, unicidade, personalidade e efusão do sentimento, que acontece quando ávida pública é erodida. Não é a toa que “a sociedade íntima rouba dos homens sua espontaneidade” (Ortega, 2000, pág113), pois a procura pela autenticidade torna os indivíduos inartísticos. Com isso decompõe a civilidade, compreendida como o ato de tratar os outros como estranhos, usar uma máscara, cultivar a aparência, como modo de fugir da identidade. Para tanto se exige um grande controle de si para não deixar transparecer nos gestos as emoções. Seria incivilidade o ato de incomodar o outro com o próprio eu, como se impusesse a intimidade, um comportamento tido egoísta e narcisista de esquecimento do outro.
Apesar de Ortega afirmar a distância, isso não significa para ele a renuncie a relação e a comunicação, mas o fato de não utilizar o amigo para fortalecer a identidade e crenças. A sociedade que instiga o saber de si, impondo uma determinada subjetividade, teria no cultivo da distância a substituição da descoberta de si pela invenção de si, possibilitando a criação de infinitas formas de existência. A amizade seria o “programa vazio” de uma relação a criar que pode substituir a família no imaginário afetivo, não negando a família como instituição, mas seu monopólio no imaginário emocional. A liberdade de criação acontece no espaço entre os indivíduos, no mundo compartilhado. Mas fica a indagação de por que traduzir as relações de amizade em relações fraternais? Uma explicação seria por existir a tendência de adaptar o distante e desconhecido a algo familiar e próximo, através da analogia entre as descrições enfáticas e emotivas e relações de parentesco, que são consideradas mais significativas. Trata-se do medo da diferença, do indeterminado.
Assim a família tem seu significado tão enraizado como sendo um lugar forte ante a um mundo inóspito e estranho. Porém, através dessa idéia de parentesco, se destrói o político. Por isso a nova política e ética deve encorajar a vontade de agir, de pensar uma ainda não pensada, apontando para a criação de novas imagens e metáforas do pensamento, renunciando prescrever qualquer imagem dominante. A proposta de Ortega é, portanto, experimentar, romper, inaugurar o ainda não imaginado, criar novas formas de vida e comunidade. Seria uma resistência política, tendo por político o que Deleuze e Foucault afirmam, como sendo “procura e fomento de novas formas de subjetividade, de imagens e modelos para pensar e amar”. (ORTEGA, 2000, pág117). A amizade é tida como um exercício político, como uma nova forma de perceber o diferente baseado na “boa distância”, algo além da reciprocidade, proximidade ou identificação.