8 de jan. de 2008

RUMO À IMORTALIDADE E À VIRTUALIDADE: Construção científico-tecnológica do homem pós-orgânico (Paula Sibilia)

Paula Sibilia, seguindo reflexões do sociólogo português Hermínio Martins, apresenta interessantes questionamentos sobre atuais processos de hibridização homem-tecnologia pelo viés de uma tradição “fáustica” do pensamento ocidental, uma vez que, como apontada no texto, essa relação pretende uma ultrapassagem das limitações da organicidade, destacando a construção de um ser híbrido “pós-biológico”, misto de corpo humano e artifício técnico. O homem pós-biológico almeja se desvincular das restrições espaciais e temporais ligadas à sua materialidade orgânica, para atingir a virtualidade e a imortalidade. Nesta lógica, o corpo deve tornar-se imortal para se adaptar (Stelarc), no contrário, o corpo humano, na sua antiga configuração biológica, estaria tornando-se obsoleto. Considerando que a evolução tecnológica seria dez milhões de vezes mais veloz do que a evolução biológica, como pretender que o velho corpo humano não se torne obsoleto?
Em oposição à tradição “prometéica”, que pensa a tecnologia como a possibilidade de estender e potencializar gradativamente as capacidades do corpo humano, a corrente fáustica enxerga na tecnociência a possibilidade de transcender a própria condição humana. O homem-pós-biológico estaria em condições de superar as limitações impostas pela sua organicidade, incluindo as doenças, o envelhecimento e até a morte. O “cyborg” seria o agente da sua própria evolução pós-orgânica. Entregue às novas cadências da tecnociência, o corpo humano parece ter perdido sua definição clássica, tornando-se permeável, manipulável, projetável. Mark Dery acrescenta que estamos em condições de transcender as limitações das espécies particulares, combinar e programar as virtudes de diferentes espécies, ou seja, a criação de novos seres transgênicos. Em outras palavras, o homem agora tem condições de se auto-criar, de produzir seu próprio corpo, administrando a sua pós-evolução, através do arsenal de artifícios da tecnociência. Que tipo de saber é esse, que faz do corpo humano um objeto da evolução pós-biológica? A título de provocação, a autora compara tal fenômeno com o famoso mito Frankenstein por ser aquele rapaz que conhecia o suficiente de magia para iniciar um processo, mas não o suficiente para interrompê-lo no momento apropriado.
A tradição fáustica constitui uma das linhas de pensamento sobre a técnica, que pode ser detectada nos textos de diversos autores dos séculos XIX e XX. Nela é possível detectar fortes tendências “gnósticas”, que rejeitam a organicidade e a materialidade do corpo humano, procurando um ideal ascético, artificial, virtual, imortal. A tradição fáustica esforça-se por desmascarar os argumentos prometéicos, afirmando que o caráter da ciência é essencialmente tecnológico tanto no plano conceitual quanto no ontológico. Existiria um “programa tecnológico oculto” no projeto científico, explica Martins. Apontando para uma ruptura com relação ao pensamento moderno, o sociólogo declara que o atual projeto tecnocientífico está norteado por um impulso insaciável e infinitista para a apropriação ilimitada da natureza, tanto exterior quanto interior ao corpo.


IMORTALIDADE: para além do TEMPO humano.

“Tecnicamente, não haveria mais razão para morrer (...) O corpo não precisa mais ser consertado; suas peças serão simplesmente repostas”. (Stelarc)


Várias limitações biológicas ligadas à materialidade do corpo humano pertencem ao eixo temporal da existência humana. A tendência fáustica, nesse sentido, está bem representada pelas atuais descobertas e projetos na área das biotecnologias (transgênicos, clonagem, genoma), que colocam o arsenal cientifico-tecnológica na luta contra o envelhecimento e a morte. Segundo o próprio Hermínio Martins, as biotecnologias criar novas formas de vida. É a vocação transcendentalista que enxerga no arsenal tecnocientífico a possibilidade de ultrapassar as limitações inerentes à condição humana.
Sibilia coloca que, segundo Martins, a tecnociência contemporânea redefine as antigas fronteiras de seres naturais como matéria puramente manipulável, instalando a criação de combinações do orgânico e do inorgânico, do natural e do artificial, do humano e do não-humano. Nesse marco, a sociedade atual assiste ao surgimento das mais variadas “visões tecnofânicas”, aspirantes a um saber quase divino, capaz de controlar a vida superando todas suas limitações tipicamente orgânicas. Inclusive a mais fatal de todas elas: a mortalidade. No processo de hibridização com as máquinas, o corpo humano poderia se livrar da sua natural finitude.

VIRTUALIDADE: para além do ESPAÇO humano
Outro leque de limitações que as potencialidades orgânicas do corpo está inscrito no eixo espacial da existência. O atual “imperativo da conexão” representa esta tendência, estimulado pela abundante oferta de dispositivos e serviços da área informática e das telecomunicações. O corpo humano hoje é entendido como informação: ele é um banco de dados, um código, um conjunto de instruções programáveis. Nesse sentido, ele também pode sofrer upgrades, pois as criações tecnocientíficas prometem libertá-lo dos seus limites biológicos, obsoletos, superando assim a sua organicidade animal para se tornar mais compatível com o tecnocosmos que o circunda.
Estaríamos deixando de ser robôs para virarmos cyborgs? Enquanto o corpo-máquina, característico da era industrial, fica obsoleto, começa a surgir o corpo-informação, o sujeito da sociedade pós-industrial. Nesta nova face do capitalismo global, cuja base já não reside tanto nos produtos materiais quanto na informação, com a ênfase perpassada da produção para o consumo, assistimos a uma virtualização generalizada dos valores.

Neo-Gnosticismo
Transcender (radicalmente) a humanindade, intenção clara do texto, trata-se de ultrapassar os parâmetros básicos da condição humana (finitude, contingência, mortalidade, corporalidade, animalidade, limitação existencial) aparece até como uma das legitimações da tecno-ciência, conforme Hermínio Martins. É fáustico o tecno-transcendentalismo associado aos discursos sobre o nascente homem pós-biológico, e ele está notoriamente impregnado daquilo que Martins denomina gnosticismo científico-tecnológico: horror ao orgânico, repugnância pelo corpo, aversão pelo natural. A tecnologia informática e das telecomunicações parece disposta a realizar sonhos neo-gnósticos, pois, com a sua tendência virtualizante, a aparelhagem digital converte tudo em “informação”, inclusive os próprios corpos humanos.
O texto adota a terminologia proposta por Martins que é neognóstica esta rejeição da materialidade orgânica e esta vontade de “virar luz”, ultrapassando as limitações temporais e espaciais ligadas ao fato de sermos demasiadamente orgânicos. De acordo com esta tendência, então, estaríamos virando pós-orgânicos e, com isso, “pós-humanos”, apontando para a imortalidade e a virtualidade.

Dos “corpos dóceis” aos “corpos ligados”
Quais são as implicações políticas e econômicas destes processos, numa sociedade voltada para a produção de consumidores dos mercados globalizados? Que tipo de corpo e que tipo de sujeito estão sendo criados na nossa “sociedade tecnológica”? Parece-me que o que é aquilo que estaríamos nos tornando, ainda é uma pergunta sem resposta. O direcionamento da criação dos seres humanos é a grande interrogação que nos restaria.
Ao mudar o foco da produção para o consumo, a sociedade ocidental já não parece precisar tanto daqueles “corpos dóceis” destinados a alimentar aos serviços industriais, quanto de novos tipos de corpos dispostos a consumir os produtos pelo novo capitalismo de superprodução. Corpos que intimam com a tecnologia: corpos ligados, conectados, hiper-estimulados e aparelhados pela tecnociência, permanentemente ameaçados pela obsolescência; corpos fáusticos.
Sobre as sociedades de controle, indicou-nos Deleuze que as novas tecnologias inauguraram instâncias subjetivantes capazes de substituir as velhas instituições das sociedades disciplinares. Caberia refletir, então, acerca do papel desse novo sujeito aqui analisado, o homem biotecnológico e teleinformático de vocação fáustica. Quais seriam as suas limitações, e quais as suas opções de resistência e de criação? E, por fim, a grande indagação do “Como manter-se vivo?” - Replicante Roy (Blade Runner), aqui não é mais a mera questão, mas sim o porquê e para que se manter vivo, se tudo a que nos cabe ou a que nos é útil é manipulável, controlável; se podemos recriar, combinar, redefinir novas espécies ou ainda nosso próprios e novos corpos?

7 de jan. de 2008

MINITUARIZAÇÃO DO SENTIR VIRTUALIZADO: DA CONDIÇÃO HUMANA À CONDIÇÃO CYBORG


Helena Taveira vem trazer à tona principalmente com o seu texto a questão da fusão do tecnológico com o biológico, entre o orgânico e o mundo mecânico, a metamorfização do ser real com o ser virtual, ou seja, a maior cumplicidade na co-existência entre essas duas realidades. Vem problematizar a condição daquele que está na fronteira, ou seja, nós que nos vemos entre esses dois espaços e passamos por uma gama de modificações, que envolve tanto o corpo como as emoções, indagando ainda se o mundo mecânico seria um colaborador ou concorrente do ser humano.

O mundo passou por uma terceira revolução tecnológica, que fez crer no computador não mais uma simples máquina ou sistema, indo além principalmente depois da inserção da Internet. Aquilo que era visto como meramente eletrônico, passa a ter um caráter de subsistência, pois os utilizadores vão atrás desse meio, inserindo-se cada vez mais nessa cultura característica de um sistema tecnológico, que toma conta com suas linguagens e símbolos bastante específicos. É nesta revolução do acoplamento das tecnologias do mundo virtual aos limites do mundo real, produz uma reformulação das coordenadas espacio-temporais, associada a idéia de movimento, que fez superar a distância através da velocidade, sendo que aparentemente rejeitando o corpo. Mas não se trataria disso, pois autores como Claudia Giannetti afirma que Internet estaria não excluindo o corpo desse processo, mas dinamizando corpos.

No entanto, ao mesmo tempo em que se ratifica a absorção do tecnológico pelo orgânico, pensadores como Virilio possuem uma visão antagônica, com uma crítica clara a uma suposta supremacia das tecnologias inseridas no virtual sobre o real através das minituarização dos componentes do primeiro. Estaria se falando do declínio da presença física em proveito de uma presença imaterial e fantástica. Para Taveira, torna-se necessário desmistificar o pensamento apocalíptico de tal tecnofobia. Nesse caso, estaria se valorizando a mutação da composição orgânica em síntese numérica quando se inserir no mundo binário numa imaterialidade do corpo ou espectralidade. Poderia se pensar que o ser humano conseguiria adquirir atributos de um Deus divino, ou no mínimo poderia estar fascinado pelo deus-máquina. Mas na verdade o que se enfatiza aqui é a liberdade de ação e experimentação dessa nova entidade corpórea que será mais flexível, que acarretaria dentro desse processo não só uma perda da indentidade, pela reciclagem das diversas epidermes que pode corporalizar, como a total aniquilação do comprometimento, pois se eximiria de qualquer responsabilização pela subsistência do meio que vive momentaneamente (me lembrei dos hackers...).

As possibilidades que o virtual traz, com seu campo movediço, intinerante e flutuante; aliado a eliminação de algumas limitações “terrenas” na translação incorpórea do estar em qualquer parte em tempo real, faz pensar que o mundo já não nos é suficiente e a possibilidade de ultrapassar a histórica adequação ao sedentarismo, com o retorno do nomadismo. Giannetti ressalta que isso é possível principalmente pelas nossas capacidades naturais, a viagem mental, por mais que o corpo permaneça imóvel a mente pode navegar.

Ainda assim é estritamente necessário que o mundo virtual incorpore alguns traços comuns da nossa realidade, de maneira a se tornar mais complexo, utilizando da associação das tecnologias que atenua a passagem entre as duas realidades construída pelo fenômeno da interatividade, responsáveis pela transmutação de espectadores (participantes do mundo real) em utilizadores (participantes no mundo virtual). Existe até o esforço de mediações possíveis como captadores de sentidos, sensores e teledetectores provindas da produção microeletrônica, o que faz o ser humano um “homem-prótese”. Porém só a mente viaja, enquanto a matéria física não se desloca efetivamente. Mas se percebe em pesquisas realizadas com intuito de impossibilitar qualquer sensação no ser humano, que seja qual for a viagem que a mente queira fazer pelo mundo virtual, afetará incondicionalmente o corpo físico e terá sempre que enviar a este corpo físico o mais ínfimo sinal, para que ele possa se relacionar com o dispositivo intermediário que são o mouse, teclado, entre outros. Por isso, a relação do homem real com o mundo virtual com o processo de desmaterialização do corpo físico em corpo mental com todos os tipos de prolongamentos, contribui para a estreita relação de parceria visto serem fundamentais para a imagem humana sobreviver no mundo virtual.

Chegando a conclusão da perfeita inserção do mundo virtual no real, Taveira admite que se deva formar, pelo menos a nível corporal, uma si (ir)realidade homogênea, tendo em vista que o corpo seria uma unidade indivisível, já que as tecnologias tanto nos colonizou como nós as colonizamos. Com isso surge a questão: não estaríamos nos tornando cyborgs? Estaria se falando nesse sentido de um homogeneização do mundo real com o virtual, com o auxílio das já mencionadas, próteses e prolongamentos, que torna possível potenciar capacidades inatas que se viam até então como entidades pré-existentes e limitadas. Estaríamos então sendo substituídos por equivalentes eletrônicos? A autora Stelarc propõe com seu projeto “Stimbod” algo semelhante, em que parte do corpo estariam conectadas a sistemas de estimulação muscular, que torna possível mover uma parte do corpo a partir de uma cidade longínqua, ou seja, à distância pela rede. Tratar-se-ia de uma adaptação do corpo à máquina ou da máquina ao corpo? Leva-se em questão com essa discussão dois pontos intrigantes: um é o cyborg como um projeto de um corpo mais completo e outro do corpo ser fragmentado pela tecnologia. Ao mesmo tempo, está se colocando também em pauta as múltiplas potencialidades que um corpo pode adquirir, mas questiona-se a capacidade de controle.

Aliada a estes questionamentos, ainda quanto ao assunto da corporeidade, supõe-se a situação de se substituir o corpo mental por imputs e outputs, como meio de melhorar a atuação do ser humano no mundo virtual e expandir a sua consciência em tal realidade. Esta possibilidade não seria uma decisão, provavelmente, irreversível de desvanecimento e desmaterialização da experiência consciente e cognitiva, tão peculiar do ser humano? Mesmo que ainda não seja possível responder a essa pergunta, sabemos que ainda dependemos de nosso corpo para qualquer que seja a relação, ou no mundo real ou virtual e para almejar tal façanha seria necessário não só componentes sensoriais similares aos dos ser humano como de determinadas capacidades humanas que permitem que a máquina manipule uma diversidade de informação. Ora, estas questões não estão tratando apenas de uma biotecnologia, mas de uma bioética. Tal atitude de eugenismo (combinação de influências hereditárias e ambientais, afim de melhorar as qualidades físicas e morais da raça humana – Michaelis, 1998), aparece com freqüência em nossa sociedade contemporânea através das inúmeras possibilidades que a tecnociência fornece. Mesmo assim, o mente ainda permanece muito enraizada na territorialidade e por sua vez, o comportamento emocional ainda é específico do mundo real, nos fazendo perceber que nunca se poderá misturar completamente na virtualidade.

Mas será que é possível fazer um sistema tecnológico exprimir emoção? Será mesmo a emoção sentida por ele próprio? E se levarmos em conta o fato do ser humano sentir empatia por uma máquina? Essas questões me fazem lembrar do filme “O Homem Bicentenário”, interpretado pelo ator Robin Wiliams ou mesmo do filme AI – Inteligência Artificial que questionam se ser humano seria capaz de viver com andróides tal qual com um ser humano. Temas como esse mais uma vez mexem com a bioética, pois estaria se propondo incutir pacotes de emoções pré-definidas ou programas numa máquina fazendo com que um sistema binário fosse capaz de se emocionar, análogo ao humano. Apesar desse intuito, muito provavelmente a coisa funcionaria sob certos limites, existindo apenas, por parte das máquinas, o reconhecimento de expressões emocionais e por vias disso estes iriam responder com uma emoção pré-programada. Ainda assim, a situação parece completamente díspar de um mecanismo biológico do ser humano, pois não se chegaria a ter o inconsciente emocional ou mesmo a espontaneidade do processo emocional.

Já quanto a uma possibilidade de nos emocionarmos com um fluido binário que circule no espaço virtual, ainda existiria o impedimento da espontaneidade, já que esta seria constrangida pelos tais sistemas auto-organizados que se baseia pelo que já anteriormente lhe for atribuído. Assim, não bastaria mimetizar o processo emocional do ser humano, mas criar mecanismos verdadeiros de feedback, para que as emoções coincidam simultaneamente com as condições físicas e as exigências feitas pelo ambiente. De qualquer forma, as máquinas só poderão ter um sistema de mecanismos emocionais, e não sentimentos reais, mas que serviriam para proporcionar maior naturalidade e menos rigidez na ponte entre o homem e a máquina. Nesse sentido, se evitaria para que esta relação não fosse apenas um monólogo intercalado pelos tempos de respostas, tais como proporciona os softwares que são como entidades coletivamente massificadas.

Existiriam com esse incremento às máquinas, mecanismos que permitam um conhecimento e entrosamento mais peculiar e intimo com seu utilizador, buscando individualidade nos seus serviços. Preza-se também nesse processo, o equilíbrio não só entre o mecânico e o orgânico, homem e a máquina, mas também para que não ocorra nenhum sentimento de domínio ou pretensa por parte de um ou outro. Assim, em meio a tantas propostas e devidos cuidados, a relação entre o homem e a máquina, entre o orgânico e o tecnológico, demonstra não requerer um envolvimento tão significativo, apenas necessário, para que produza modificações pertinentes não na natureza do homem, mas na forma como ele vê a si próprio e ao meio que se relaciona com as máquinas. Desta maneira, não só se estará potencializando as máquinas, como quem dela usufrui.