8 de mar. de 2008

Consumo e corpo

Ao tratar sobre um assunto como o aumento do consumo de drogas inibidoras do apetite, levando em consideracao que esse aumento se dá por motivos como contrabando frequente dessas drogas, prescriçao desenfreada por partes dos medicos ou mesmo uma fraca presença do estado ou governo no controle desse tipo, é no mínimo uma forma de se buscar uma explicaçao por uma via mais fácil, ou seja, você aponta os culpados e pronto. A questão passa a ser ir atrás destes, tomar as providências cabíveis, segundo a lei e a partir daí, ficar com a consciência tranquila e aguardar que essas problemáticas vão desaparecer. Aí, quando menos se espera, o problema reaparece, mas isso nao quer dizer que havia sumido, mas que achava-se isso. Nesse ponto passa-se a se pensar "Ahh, mas fizemos tudo certo, prendemos os culpados, bloqueamos o canal por onde entravam as drogas. O que aconteceu?" e continuando a busca por uma explicação, mais uma vez volta-se numa identificação dos culpados "Isso acontece porque tem esses safados que querem se drogar. Se querem tomar esses remédios pra emagrecer ate morrer, que tomem." E nesse ponto a forma de combater essas questões não mais buscam aparatos legais, não mais se diferenciam usuários de traficantes e o pau passa a comer pra tudo que é lado (algo meio Tropa de Elite). Como seria então pensar de outra forma o aumento do consumo no Brasil de drogas inibidoras de apetite?
É comum - senão desgastante - no nosso dia-a-dia sermos inundados de propagandas, dos mais variados tipos e voltada para os mais variados objetos de consumo, onde o grande ponto em destaque é a relaçao de eficiência do produto com o corpo do sujeito que protagoniza o comercial. Exemplos não faltam, propagandas de cosméticos tem sempre pessoas com a pele impecável, corpo mais do que sarado e tudo fica ligado ao produto. Produz-se um tipo específico de corpo que as pessoas devem ter. Produz-se uma Norma corpórea. E como toda norma, deve ser cumprida e aqueles que nao a cumprem, que não se adequam a ela sofrem punições. Esse tipo de corpo que se quer que tenhamos apresenta perfeições em toda sua extensão: Braços bem definidos, pernas torneadas, bumbuns e peitos bem durinhos, rosto com pele lisa, etc. É um tipo de corpo que se não impossivel é muito difícil de se atingir esse patamar. Como perfeição, em nossa sociedade, tem um caráter atrelado a saúde e também a um status social, a busca por essa condição é vista como um caminho para ser alguém no meio social em que se vive. A forma de se chegar lá já nos está dada pelas propagandas: comprar o produto veiculado para ter um corpo ideal. Então segue-se esse movimento. Cresce o consumo de determinado produto, pois existe a crença de que ele leve ao corpo perfeito (Ah, entre os produtos, nao estariam somente os cosméticos, mas coloquem nesse meio: exercícios de academia, dos mais variados tipos, aparelhos milagrosos, etc). Só que, como disse antes, chegar a esse corpo perfeito é impossível, senao difícil, demorado. E numa forma de organização social como a nossa, que prega que perder tempo pra alcançar as metas é também perder dinheiro, a demora por atingir um corpo perfeito não é aceitável. Tem que existir algo que apresse o processo, que seja um caminho mais fácil, mas que proporcione atingir o resultado normatizado, ou seja, corpo perfeito. É por aí que entra em cena as drogas inibidoras de apetite, sua eficiência em fazer com que as pessoas literalmente fechem a boca e emagreçam no menor tempo possível é incontestável. O consumo dessas drogas cresce porque elas se tornam o meio eficaz das pessoas atingirem o padrão corpóreo exigido. E como os meios legais de obtenção das mesmas não pode suprir a demanda, os meios informais, senão, ilegais começam a se destacar (nao entrarei nos detalhes de como essa rede funciona, aí ja seria outro ponto a ser discutido). Pois bem, cresce o consumo dessas drogas, alguns atingem o padrão esperado, outros nem tanto, porém de uma hora pra outra, o ideal de corpo perfetio muda, e com isso mudam as propagandas, os produtos e ja se produz outro tipo de corpo a ser alcançado. Por exemplo, há nem tanto tempo começou uma moda em se colocar silicone nos seios e com isso o aumento de cirurgias aumentaram consideravelmente, isso em um país como nosso onde o grande xodó, como se propaga, era a Bunda. Já não basta ter um bumbum bem definido, tem que ter peitos bem delineados também. Com essa mudança no ideal de corpo perfeito, lá se vão as pessoas "acompanharem" isso, porque não se pode contrariar uma norma, pois sabe-se das consequências punitivas disso. E como cada vez mais esse tipo de corpo vai ficando difícil de ser alcançado, mais uma vez se aposta no uso desses inibidores, que também têm que acompanhar o ritmo disso tudo, com isso as drogas tendem a se tornar mais fortes, para terem efeitos mais rápidos. É uma roda vida, mas que nesse girar a intensidade vai aumentando, e forças novas vão se acrescentando a ela. Pensar esse aumento do consumo de inibidores do apetite sem ao menos levar em conta a forma como se dá a relação nossa com nosso corpo (parece até estranho falar isso, porque aparenta uma distância entre nós, seres pensantes, e nosso corpo, coisa mais concreta..a velha idéia cristã de mente e corpo), ou que tipo de corpo se espera que se tenha, ou como se produz a idéia de corpo em nossa sociedade, para assim enxergar como isso é atravessado por essa questão do consumo é algo essencial para podermos desconstruir certos valores que nos fazem virar reféns dessa busca por se adequar a uma norma, e nos possibilita criar outros modos de vivenciarmos nossa vida.


P.s.: Texto escrito a partir da reportagem da Uol "O Brasil é o maior consumidor de inibidores de apetite". Link: http://noticias.uol.com.br/ultnot/2008/03/05/ult23u1372.jhtm

5 de mar. de 2008

"uma entrevista cartografada"

Para ser um entrevistador tem-se que, antes de tudo, estabelecer uma posição de cartógrafo; assim como fala Suely Rolnik em seu livro “Cartografia Sentimental – transformações contemporâneas do desejo”. Cartografar é acompanhar a transformação da paisagem (Rolnik, 1989. p. 15), é transformar e transcrever junto com quem se modifica, é movimentar-se junto com os movimentos de quem é cartografado.
As cartografias mostram as transformações dos mundos de cada um, seus desdobramentos, abandonos de formas antigas, recuperações de mundos passados, criação de novos mundos. Todas essas movimentações são motivadas pelo desejo, ele é o “processo de produção de universos psicossociais” (Rolnik, 1989. p. 25). Ele é o início, a intensidade que transforma e produz, trabalhando com os elementos mais diversos dos quais tem acesso.
A transformação e a produção de mundos têm um elemento diferencial, eles possuem processos visíveis e invisíveis que produzem algo que Rolnik chama de “máscaras”, não falsidades ou omissões, mas sim, faces que se apresentam de diversas maneiras e que podem mudar a qualquer momento, “a máscara funciona como condutor de afeto (...) ganha espessura de real, ela é viva e, por isso, tem credibilidade: é verdadeira” (Rolnik, 1989. p. 31). Quem olha de fora, só consegue enxergar a máscara já constituída, o indivíduo transformado que se apresenta ao mundo, mas, um cartógrafo, que está em busca de acompanhar essa transformação, percebe também seus elementos mais discretos, os desejos, os afetos que levam à mudança e à criação. O cartógrafo acompanha o visível para descobrir o invisível.
E está aí a principal diferença entra a cartografia e o mapa, mapear é descrever o que já aconteceu, depois de modificado. Cartografar é acompanhar a modificação em todas as suas fases, seus momentos, seus movimentos de transformação; dessa forma, uma cartografia pode demonstrar intensidades e afetos que se manifestam, mesmo estes não aparecendo no plano visível, pois ela os acompanha na medida em que segue o movimento de criação.
Sendo estas máscaras, posições que se pode estabelecer no mundo, elas podem ser várias, se modificar e adaptar-se ao externo a qualquer momento. Para que isso aconteça, são necessárias três movimentações: primeiro o desejo deve ser gerado e tornar-se capaz de ser exteriorizado, deve haver atração de afetos. Essa atitude, em certa medida, depende de um cartógrafo-entrevistador, ser capaz de manter uma relação com quem entrevista na qual os desejos e as intensidades sejam trazidos à tona e possam materializar-se em máscaras. O que a experiência da entrevista veio proporcionar foi isso, a materialização dos afetos para que o interior se tornasse visivelmente presente; e sem a manutenção do ambiente em que os afetos podem sentir-se “livres”, não é possível que isso aconteça.
Num segundo momento, está presente no entrevistado a sensação de habitar o espaço, de poder representar suas máscaras livremente, sem precisar modificá-las a maneira do cartógrafo, mas sim, do seu desejo. Está-se dentro da entrevista, as respostas fluem e as perguntas são construídas acompanhando a trajetória do que é respondido, buscando-se, cada vez mais, a presença dos afetos no ambiente.
Se o segundo momento não se completa, o terceiro não aparece. Este último movimento é aquele da “territorialização” de transformar e manifestar afetos e desejos, de construir o mundo. Por vezes, acontece em meio à passagem do segundo momento para o terceiro, um estranhamento; mas o entrevistador-cartógrafo deve trabalhar para que isso seja positivo, pois, é através do contato com o estranho e com o diferente que os mundos se transformam e se renovam. O estranhamento com uma pergunta permite um pensamento sobre ela, uma opinião que será inovadora, nunca pensada, uma posição que se forma enquanto se pergunta e o cartógrafo-entrevistador acompanha tudo isso acontecer, presenciando a criação das máscaras dos afetos do início, quase em contato com o próprio desejo. O desejo passa a estar em contato com o momento da criação e da percepção do entrevistador.
Em cada situação e vivência que presenciamos, colocamos novas máscaras, elas nos ajudam a interpretar e dialogar com o externo, de forma que a atração dos afetos tornem-se materializadas e algo possa acontecer, como um diálogo em uma entrevista, por exemplo. Nem sempre somos os mesmos, não agimos da mesma forma sempre e cada forma de agir depende da atração e da intimidade dos afetos que se encontram, cada forma de criação é um mundo, uma realidade que se estabelece para aqueles que se afetam. E, por sua vez, cada mundo é uma realidade que transcende um plano individual e atinge a existência do social, o desejo, que parece tão íntimo, não se encontra separado da realidade do social, mas sim, é projetado para ele.
Desejar é adaptar sua máscara ao social que lhe é apresentado, obedecer à troca de intensidades dos afetos, mas de forma que se configure como, realmente, uma troca; um consentimento mútuo de afetos que podem se complementar e não se anular, complementação do desejo com o social, com a realidade.
Esse foi o trabalho e a experiência da entrevista: cartografar, acompanhar os movimentos como eles se apresentam, na sua gênese e na sua transformação; ser acompanhante ao mesmo tempo em que transformador do existente. Ter por caminho apenas o desejo e por guia, os afetos; conduzir uma cartografia e transformar e produzir um mundo.

4 de mar. de 2008

ATA - Reunião 05.03.08

  • Participação de Helmir (falando sobre sua monografia, possibilidade de participação no grupo, participaçao no blog e no email do grupo)
  • Kleber: apresentação e discussão do texto de Suely Rolnik "Toxicômanos de identidade: subjetividade em tempo de globalização", postado aqui no blog.
  • Encaminhamentos da pesquisa PIBIC
  • Presença: Andressa, Herica, Jade, João, Karyne, Lázaro, Laura, Marcus, Rafaela.

TAREFAS:

  • Pibiqueiros: terminar a realização e a transcrição das entrevistas em 15 dias (18.03.08)
  • Todos (sem a obrigatoriedade de Andressa, Marcus e Herica) : começar a análise e discussão de uma entrevista aqui no blog.

PRÓXIMA REUNIÃO:

  • A discutir / não haverá reuniao na próxima semana

3 de mar. de 2008

Precisamos perguntar!

“Você não sente nem vê, mas eu não posso deixar de dizer meu amigo, que uma nova mudança, em breve, vai acontecer. E o que há algum tempo era jovem e novo, hoje é antigo. E precisamos todos rejuvenescer” .
(Belchior – Velha roupa colorida)

Esse pequeno fragmento do cancioneiro popular cearense aponta que na década de 70, já se antecipava à condição juvenil, a circunstância RE. Rejuntar, refazer, repensar, reviver, reatar, rejuvenescer. RE em tudo que aparecia, de modo a modificar a aparência.
Pois bem, de lá pra cá, o RE passou a ser usado com maior freqüência e também a significar um estrato de tempo cada vez menor. Se lá (anos 70) a (re)atualização indicava uma ruptura com a década que ficara pra trás, hoje não seria exagero supor, que se luta para deixar de ser o dia de ontem. Muita velocidade para experimentar a vida. Não dá tempo. Re-experimentar talvez permita saber melhor. Não há tempo. É isso que se vive.
Sevcenko (2001) nos apresenta a vida agora como um passeio no loop da montanha russa. Lá o tempo sequer se conta como experiência. Um quase surto.
É disso que trata Suely Rolnik (1997) em Toxicômanos de identidade: subjetivação em tempo de globalização. Suely aponta que as subjetividades se produzem em meio a afetos cambiantes, embriagados pela aceleração das coisas pulverizadas no ar, coisas líquidas como diria o Bauman (2004). Qualquer coisa hoje parece habitar a condição líquida. Contrapartida dessa liquefação nos modos de existir, persiste nas pessoas a vocação moderna de constituição de uma “referência identitária”. Crise que se intensifica, acentua Rolnik. Como ser, onde pelas condições de vida, já não se permite a estabilidade da experiência de ser?
A impossibilidade de ser moderno tenciona a experiência de quem se vê às feras no pós-moderno mundo RE. Aí só enchendo a cara ou coisa que o valha. Surgem os toxicômanos da identidade, onde tudo vale para SER, mesmo que esse ser seja ilusório ou líquido. Psicotrópicos, maconha, cocaína, álcool, tv, internet, literatura de auto-ajuda, esportes radicais, igrejas-show, dietas, definição corporal, cirurgias estéticas, etc e etc. Tudo isso e mais outros tantos dispositivos que vendem a ilusão de ser, se apresentam à experiência humana contemporânea. Esses dispositivos são recursos à disposição de um sujeito com medo, que anseia por ser.
Esse parecer ser o diagnóstico de Rolnik (1997). Consumo que se intensifica para produzir uma identidade ou representação de si. Diante do terror desse modo de existência que se generaliza, Rolnik teme pela ética na vida. Como um sujeito tomado pela carência pode por em questão sua vontade? Resistir é preciso, mas como? Como resistir sem uma verdade dura? "Hay que endurecer-se Pero sin perder la ternura jamás!" diria Che. Mas ternura como? O que dizem as pessoas da amizade que mantém, da necessidade de identidade para ser reconhecido e de consumo para se sentir inserido na vida. Precisamos perguntar.

RB.
BAUMAN, Zygmunt. Amor líquido: sobre a fragilidade dos laços humanos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2004.
ROLNIK, Suely, Toxicômanos de identidade: subjetividade em tempo de globalização. In LINS, Daniel. Cultura e subjetividade: saberes nômades. Papirus: Campinas, 1997 (19-24)
SEVCENKO, Nicolau. A corrida para o século XXI: no loop da montanha-russa. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.