10 de ago. de 2007

“As dobras da subjetivação capitalística”

Não deveríamos ter dificuldade em perceber diferenças entre aquilo que está em linha reta e aquilo que curva. Não sei por que cargas d’água, temos. Digo isso tanto no que se refere à experiência sensório-perceptiva (lembrar da Gestalt), como também de outras instâncias psicológicas que ativam sentidos em nós, como a memória, a cognição e o pensamento.
Desse modo, refletir sobre a diferença do pensamento que faz curva e do pensamento em linha reta ajuda a compreender o que Rosane Silva quer com esse texto que apresento. Sei que é estranho divagar sobre a flexibilidade de um pensamento, mas para discutir a dobra de alguma coisa, temos que nos relacionar antes com uma ferramenta de acesso a essa coisa que também faça dobra, do contrário, perde-se contato com aquilo que está em análise e faz dobra.
Em outras palavras, é necessário um pensamento que faça curva para perceber e analisar aquilo que em movimento, não se mantém em linha reta. Aponto assim para a questão que inicia esse comentário: no que se refere à análise de algo, muitas vezes se perde a dobra, por não utilizar uma ferramenta que torne essa dobra perceptível. Ressalto que isso não é uma questão técnica. É antes uma questão política e tem a ver com aquilo que Andressa falava do texto de Heliana Conde sobre experiência e temporalidade e os três modos de análise dos sentidos: positivista; indiciário e genealógico.
Dito isso, passo ao texto que tematiza as dobras da subjetivação capitalísticas e o que isso tem a ver com as condições para a invenção de uma psicologia social. Lembro que estou a falar da 2ª configuração do social e como essa institucionalização demandou um conhecimento sobre o indivíduo e sobre o mundo.
Essa 2ª configuração do social implicava numa complexificação imensa daquilo que requeria uma administração formal da vida. Na 1ª configuração se tratava apenas de uma assistência aos desvalidos (século XIII), agora (século XIX) essa política era insuficiente. A vida estava enriquecida de sentidos, tornara-se mais plural e para administrar esse pluralismo ou essas novas práticas sociais, foram requeridos novos saberes, novos entendimentos para compreensão e administração dessa experiência. Essa requisição apontava para o caráter científico para lidar com a dimensão do humano da vida.
Rosane usa Foucault para mergulhar nessa questão. Lembra que a “emergência histórica de cada uma das ciências humanas se deu por ocasião de um problema, de uma exigência, de um obstáculo de ordem teórica é prática” (SILVA apud FOUCAULT, 2005, p. 27). Ora, o que eles estão a dizer é que a política com mais força naquele momento buscava estabelecer uma ORDEM para encaminhar o PROGRESSO. Isso já se fazia a passos largos nos domínios das ciências naturais e exatas. Entretanto, no que diz respeito às relações humanas, havia uma grande carência de saber normativo. Requeria-se a objetivação urgente do social e daquilo que era individual. Esses dois processos eram complementares, mas havia interesse em administrá-los de maneira distinta. Olhando uma representação contemporânea do saber normativo, podemos pensar um pouco sobre isso: SOCIOLOGIA, PSICOLOGIA, PSICOLOGIA SOCIAL. Estranha separação, entretanto real.
Voltando ao texto, acho que a lógica das dobras ajuda a analisar essa questão. Silva (2005) nos encaminha para esse modo de análise, que seria perceber a curvatura das coisas, ou seja, seu processo de subjetivação. Ressalta que “um processo de subjetivação traduz, o modo singular pelo qual se produz a flexão ou a curvatura de um certo tipo de relação de forças” (2005, p. 28). Essa curvatura se caracteriza como um movimento onde a linha (o dentro) verga diante das forças (fora) com as quais se relaciona. Ou como prefere Silva, “a dobra, nesse caso, pode ser caracterizada como o ponto de inflexão através do qual se constitui um determinado tipo de relação consigo; o modo pelo qual se produz um Dentro do Fora” (apud Deleuze, 2005 p.28).
As dobras no que se refere as seus modos de inflexão, podem ser alocadas em quatro formatações, para o filósofo que trouxe ao mundo esse modo de caracterizar transformações no fazer humano, no caso Gilles Deleuze. Diz ele no texto de Silva:
“A primeira concerne à ‘parte material de nós mesmos que vai ser cercada, apanhada na dobra’ (o corpo, entre os gregos; a carne, entre os cristãos, e assim por diante). A segunda é a ‘regra singular’ pela qual ‘a relação de forças é vergada para tornar-se relação consigo” (pode ser tanto uma regra ‘divina’, ‘racional’, estética, ou outra, conforme o caso). A terceira é a maneira pela qual se constitui uma relação entre saber e verdade. A quarta se refere àquilo que, de diferentes maneiras, o sujeito espera (a eternidade, a saúde, a liberdade ou a morte). Esta última dobra pressupõe uma divisão entre o dentro e o fora” (2005, p. 29).
Rosane busca no seu trabalho compreender a 2ª configuração do social e a objetivação do social e do indivíduo a partir dessas dobras. Aponta então que:
Ø Primeira dobra: disciplinar o corpo, vinculando-o a um lugar preciso de produção. Vigilância espaço/temporal.
Ø Segunda dobra: modelo racional de equivalência, segmentação e homogênese dos universos de valor.
Ø Terceira dobra: indivíduo que se reconhece como sujeito e como objeto de conhecimento.
Ø Quarta dobra: movimento de dupla captura: individual e social. Individualização do social e “achatamento e sistemática homogeneização da experiência subjetiva”.

Dobra por dobra, vamos então desdobrar um pouco o sentido de cada uma. A primeira dobra, Rosana entende que se refere ao processo de individualização dos corpos. Isso está detalhado no capítulo A disciplina, do livro Vigiar e Punir (M. Foucault). Essa primeira dobra buscar fundar um sujeito disposto a manipulação da vida e dele mesmo. É a primeira flexibilização que a humanidade experimenta de modo coletivo e amplo. Para tanto, a possibilidade de controle desse ser, disposto à disciplina, implica em irrestrito controle das condições espaciais e da relação dele com o tempo.
Inicia-se aí uma política de localização espaço-temporal dos seres humanos, pois essa é a única maneira que existe para fazer com que ele se reconheça enquanto um ser diferenciado dentro de um contingente de outros seres humanos. É como se o GPS psicológico tivesse sido inventado lá, ao longo do século XIX. O controle do espaço se dá pela inscrição nos espaços, ou seja, pela especificidade funcional de um espaço onde se está localizado. O quartel, o hospital e a escola são os primeiros lugares a implementar essa política. O tempo é agregado a esse dispositivo disciplinar. Ele é que faz a inscrição do corpo dócil, quando está nesses lugares, ou seja, o tempo dos gestos e o tempo de permanência produzem saberes sobre os gestos e as permanências.
Exemplo: haveria diferenças entre pessoas que ficam dias num espaço, que ficam muitas horas todos dias, que ficam poucas horas alguns dias, que ficam alguns minutos ocasionalmente num espaço? Vamos pensar pelas dobras e ver o sentido que a administração do tempo de permanência permite saber sobre o espaço que se analisa.
É analisando esse tipo de acontecimento que essa primeira dobra vai fundar o corpo individual, quando se fala da 2ª configuração do social. Diz Rosane Silvas: “A noção de indivíduo é então forjada através da lógica disciplinar instaurada no interior de um ambiente fechado, a partir de sujeição dos corpos a uma regra de visibilidade no espaço e uma regra de segmentaridade no tempo; com isso, seria possível exercer uma vigilância generalizada” (2005, p. 31).
Não se pode esquecer que o capitalismo estava em processo de grande ascensão no século XIX e suas digitais estavam também na implementação dessa sociedade disciplinar, que constrói indivíduos em corpo humanos e lhe confere um estatuto, no caso uma identidade, que é efeito de uma produção de subjetividade privatizada, ou seja, formalizada para um viver delimitado (se isso ficou confuso, explico em reunião).
Chegamos então a 2ª dobra, que Rosane define como a reificação imaterial. Expressão estranha essa; reificação imaterial. Digamos assim, ele está querendo nos dizer que paira no ar um processo de refundação de uma idealidade. A realização de uma abstração.
Lembro que até a Revolução Francesa e o movimento do Romantismo, a subjetividade estava ligada aos modos de produção territorializados, ou seja, se vivia o que se vivia em nome de alguma coisa a qual era possível apontar, alguma coisa que tinha uma materialidade formulada, como a família, por exemplo. O pai que fazia a filha se casar por um interesse da família, a tia que queria que a sobrinha fosse freira por um interesse da família, a mãe que queria um filho doutor na família.
A 2ª configuração do social vai iniciar um processo que rompe com essas territorialidades que estavam estabilizadas. A partir do momento em que o indivíduo emerge nesses territórios, nos mesmo se deflagra um processo de fragmentação, um desmanchamento ou o que Deleuze e Guattari chamam de desterritorialização. Ainda referente aquele exemplo da família, é como se o filho chegasse para a mãe e dissesse: “Hey mãe !! Não sou mais menino. Não é justo que também queira parir meu destino. Você já fez a sua parte. Me pondo no mundo, que agora é meu dono , mãe. E nos seus planos não estão você” (música de Erasmo Carlos. Já ouviram falar?).Essa frase do poema de Erasmo foi experimentada inúmeras vezes nesse dito mundo, antes dele experimentar essa condição de vida, pelo anos de 1960. Mas ele pode experimentá-la porque ela se fez força ou dobra, nessa desterritorialização de valores fundados um século antes de seu nascimento.
Mas aquilo que se desterritorializa tende a uma nova composição. Daí aquela energia/valor/sentido desgarrada se conectar a uma outra (nova dobra) buscando a experiência de estalização. Sem os valores fundados e fundantes, a dimensão do indivíduo vai ter um peso significativo nesse desDOBRAmento. Essa maneira de transformar a si e o mundo é que traz sentido para essa história reificação imaterial, pois há um contínuo e disperso modo de se apropriar da vida de modo EGOísta, que vai produzir o que Félix Guattari chama um modo de subjetivação capitalístico.
Pra fixar: essa dimensão imaterial pode ser tomada como a “constituição de um novo tipo de relação consigo. Duplo movimento: desterritorialização, marcado pela destruição dos sistemas de valor tradicionais, e outro de reterritorialização, marcado pela recomposição dos valores que foram destruídos em cima de modelos funcionalmente similares a estes” (SILVA, 2005, p. 33).
Nessa dobra é importante marcar que essa apropriação do sentido a uma identidade, potencializa uma homogeneização da vida. Mais produção de identidade pelo que se é possível representar, dentre elas as possibilidades de consumo, por exemplo.
A 3ª dobra tida como a objetivação de si e do mundo poderia ser denominada também como a dobra do saber. Nela a 2ª constituição social experimenta a produção de um “regime de verdade” com a finalidade de trazer conscistência para seu negócio.
A expressão regime (dieta) na contemporaneidade não guarda dificuldade de compreensão de sentido. Guarda, entretanto, dificuldade de experiência linear e efetiva, que não se dobre ao primeiro impulso. Lá no século XIX, a dieta não se relacionava a obesidade, mas àquilo que não deveria ser utilizado como verdade. Dieta da verdade ou regime de verdade. Diz Silva que um regime de verdade é “conjunto de regras segundo as quais se distingue o verdadeiro do falso e se vinculam ao verdadeiro, efeitos específicos de poder, (por isso) não há relação de poder sem constituição correlativa de um campo de saber, nem saber que não suponha e não constitua ao mesmo tempo relações de poder” (apud FOUCAULT, 2005, p. 34).
É nessa dobra ou clivagem que se estabelecem as mais declaradas juras de amor entre o conhecimento e o capitalismo. A racionalidade moderna, para Rosane, vai legitimar o princípio da equivalência generalizada. “(...) a realização máxima desse sistema de racionalidade se traduz pela invenção de uma subjetividade privatizada cujo protótipo é precisamente esse homo psychologicus que emerge ao mesmo tempo como sujeito e objeto de investigação no quadro desse novo corpo de conhecimentos chamado “ciências humanas”, e que constitui assim o fundamento necessário para legitimar a idéia de indivíduo tão cara ao desenvolvimento do modelo capitalista” (2005, p. 35)
Nesse momento o sujeito moderno realiza a máxima cartesiana de REPRESENTA A SI E AO MUNDO de modo específico e positivo. Fica estabelecida como realidade a dicotomia sujeito/mundo, posto teres eles agora representações distintas. Quando vivo, Descartes havia estabelecido essa relação enquanto promessa. Sou porque penso, aquilo que não pensa é o mundo. Agora o ser e o mundo tinham especificidades distintas. A lógica cartesiana estava caracterizada.
Por fim a 4ª dobra, a dupla captura. Rosane acaba de dizer que houve uma caracterização do que é um sujeito, do que é o mundo com a emergência e desenvolvimento da 2ª configuração do social. Essa caracterização separa, distingue um do outro normativamente, legalmente. Aqui é importante lembrar daquela história de relações informais e relações formais que marcam a emergência do SOCIAL.
Pois bem, o dito social e a sua política, diante da separação, estabelecem modos de aproximação entre o sujeito e o mundo. Maneira de o sujeito reconhecer o mundo e de ser reconhecido nele. Percebam que usei o prefixo RE antes conhecer. Isso foi proposital, pois o conhecer agora está limitado ao normativo, à regra do social inventado e caracterizado cientificamente.
É nesse instante que acontece a dupla captura. Rosane explica assim: “O artifício desse movimento de dupla captura consiste em criar uma regra de identidade entre esses dois registros (o social e o individual) que ao mesmo tempo os opõe (como se fossem duas séries dicotômicas) e os aproxima (como se pudesse explicar ou ser explicado pelo outro), criando desse modo, uma espécie de aderência entre os dois termos” (2005, p. 38).
Demorei, mas cheguei.
Abraço!

4 comentários:

Técnicos, educadores e educandos do CRAS Enedina Bomfim disse...

Acredito ser impossível definir o social e o individual em separados, mas quando se trata de uma objetivação, é mais fácil seguir o pensamento em linha reta partindo do que supostamente seria o menos -o individual- para depois partir para o que o englobaria – o social- e depois partir para um estudo que se correlaciona os dois. Daí a meu ver a existência de psicologia, sociologia e por fim psicologia social, respectivamente e isoladas. Ao invés de se partir para um pensamento que faria curvas, e assim constituiriam-se as redes, permitindo uma amplitude dos conhecimentos.

Enfim quando começou as questões das dobras viajei um pouco...vou pensar mais=p

enfim..lido!

Nelma disse...

E chegou empolgado! Amanhã eu leio completo, porque preciso sair agora.

E que sejam bem-vindas ao grupo, as novas garotas.

Karyne disse...

lido

ana maria disse...

discordo de vanessa no tocante em que o pensamento em linha reta (relacionando o social e o individual) seja mais fácil. talvez mais organizado, sim. mas na minha cabeça esses dois são tão, tão TÃO misturados que eu nao consigo separá-los numa linha. Agora, concordarei com vanessa quando ela diz que as redes seriam a melhor maneira de pensar o social e o individual. Aí sim... minha cabeça consegue processar. Mas eu sempre fico na dúvida se essa indissociabilidade do individual e do social não foi algo que colocaram na minha cabeça, e não algo natural.

viajando um pouco mais, será que a questão das dobras não seria ainda mais segmentária do que as linhas? afinal, numa linha reta não é tão fácil de se fazer distinções quanto numa linha com dobras, que MARCAM espaço, tempo e pensamentos... tais coisas querem ser marcadas, ainda mais como separadas??

aí, viajei feio.

bjo galera...